Enquanto a sociedade aguarda a simplificação do sistema fiscal prometido pela reforma tributária em algum momento do futuro, o Brasil do presente continua confuso ao contribuinte, que segue tendo que lidar com as agruras e disfuncionalidades da legislação em vigor.
Até amanhã, 30 de abril, companhias beneficiadas por programas estaduais de subvenção de investimentos terão de fazer uma “escolha de Sofia”: aderirem a um programa de regularização que implica a aceitação de regras tão controversas quanto as que deram origem aos débitos ou se sujeitarem a autuações e execuções fiscais de débitos passados.
A referência ao romance de William Styron não é exagerada. Na história, Sofia Zawistowk tem que escolher qual dos filhos deve ser levado a um campo de concentração. Desde então, “escolha de Sofia” tornou-se o sinônimo para a opção entre duas alternativas igualmente insuportáveis.
No caso das empresas brasileiras, o programa de regularização da Receita vincula o desconto à aceitação das regras da Lei 14.789/2023, válida a partir de 2024, que revogou o tratamento anterior. Em síntese, a nova lei determina a tributação dos benefícios estaduais (ex: crédito presumido de ICMS) pelo IRPJ, CSLL e PIS/Cofins no percentual combinado de 43,25%. Em contrapartida, é concedido um crédito parcial, de até 25% em situações específicas.
Ocorre que esse tratamento mantém a ilegalidade da cobrança que existia nas regras vigentes na Lei 12.973/2014, que foi revogada pela nova lei. Ou seja, trocou-se uma lei problemática por outra igualmente ruim.
Um benefício concedido pelo Estado não pode ser considerado renda (base da cobrança do IRPJ/CSLL) ou receita (geradora de PIS/Cofins), independentemente do tratamento dado por uma lei, uma vez que no direito brasileiro tais conceitos possuem previsão constitucional.
A União não pode exigir do contribuinte parcela do imposto que outro ente federativo deixou de cobrar por meio da concessão de créditos presumidos.
Isso porque a incidência da tributação federal implica uma apropriação indireta, por parte da União, da competência tributária de outro membro da federação, que abriu mão de exigir o imposto. A situação caracteriza “quebra do pacto federativo”, elemento basilar do Estado brasileiro.
Instrumento legítimo
A concessão de incentivo, observados os requisitos legais, é um instrumento legítimo de política fiscal, inerente a autonomia dos estados e municípios para atender às necessidades locais.
Assim, a tributação da União desta renúncia tolhe essa autonomia. Não por outra razão a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça vem se posicionando contra a cobrança do IRPJ, CSLL e PIS/Cofins sobre os créditos presumidos de ICMS.
Contudo, o governo não aceita este entendimento e insiste em criar formas de cobrar os impostos indevidos. Assim, formulou uma espécie de programa de regularização fiscal A armadilha é que o contribuinte pode jogar a toalha e reconhecer que as subvenções recebidas até 2023 deveriam ser tributadas. Em contrapartida, a Receita Federal concede um desconto de até 80% e permite parcelar a “dívida” — que sequer deveria ser reconhecida.
Como no Brasil até o passado é incerto, a possibilidade de liquidar um passivo hipotético é tentadora, ainda mais quando as condições são atrativas. Contudo, como contrapartida ao desconto, o contribuinte deve aceitar o tratamento dado pela nova lei. Ou seja, aceitar que as subvenções devem ser tributadas.
Trata-se de situação atípica e ilegal. A lógica dos acordos tributários é uma renúncia da discussão relativa ao período abarcado na negociação e não de uma vinculação de períodos futuros.
Mas não é só isso. O contribuinte não pode, usando a expressão do texto da Lei 14.789/2023, ser instigado a se “conformar” com uma norma possivelmente ilegal. Da mesma forma, a União não pode transformar o Direito Tributário em uma aposta e transferir todo o risco da escolha ao pagador de impostos. Afinal, o contrário seria igualmente um disparate, já que não se cogita o Fisco oferecer, antecipadamente, créditos tributários por uma tese suplantada.
A valer o raciocínio da Receita Federal, o que irá acontecer se os Tribunais continuarem a considerar como indevida a cobrança dos impostos sobre os créditos presumidos de ICMS? O governo vai devolver o dinheiro arrecado por meio deste acordo? Em vez de solucionar os problemas da legislação anterior, foram criadas novas incertezas. Com a repetição do erro, o Judiciário será novamente chamado para tentar resolver a questão.